quarta-feira, 4 de novembro de 2015

SUPERANDO O PRECONCEITO DE FALAR SOBRE A MORTE - II

Por: Bel Cesar - Terapeuta. Dedica-se ao atendimento de pacientes que enfrentam o processo da morte.


Aqueles que testemunharam o processo de uma morte e se deixaram tocar pelos poderosos efeitos dessa experiência buscaram ampliar a sua visão de mundo. Assistir alguém morrendo torna-nos conscientes de nossos limites humanos e leva-nos a ser mais realistas e menos pretensiosos quanto às nossas possibilidades. Assim como, podemos encarar a morte de maneira positiva, inde­pendentemente deste processo ser sofrido ou não.

Ignorância quanto às provas científicas e depoimentos inspiradores que endossam o fato de que a morte é uma transição para outra realidade e não um fim.

Acreditamos que vamos morrer, mas não sabemos que vamos morrer. Acreditar é uma função mental, uma parte de nós. Mas saber algo envolve todo o nosso ser enquanto seres pensantes, sensíveis e intuitivos. Estamos estancados na crença da ideia de morte como aniquilação.
Nuland escreve em “Como morremos”: “Nenhum de nós parece psicologicamente apto a lidar com o pensamento de nosso estado de morte, com a ideia de uma inconsciência permanente em que não existe vazio nem vácuo - e simplesmente não existe nada. Isso parece tão diferente do nada que precede a vida”.
Como não é natural pensar em algo que não tenha continuidade, não damos sustentação à ideia de não sermos nada. A certeza de uma continuidade após a morte nos ajuda a lidar com o niilismo de nossa cultura materialista, em que o abstrato e o invisível não são reconhecidos como verdadeiros e possíveis. No entanto, não devemos cair no extremo de querer deixar a morte “leve” demais, buscando uma visão poética na qual também estaremos escondendo nosso medo de encará-la.
Associamos a ideia de estarmos vivos à nossa capacidade de nos mantermos em movimento. Portanto, temos a tendência a concluir que onde houver movimento, haverá continuidade. Por isso, quando nos deparamos frente à paralisação do corpo devido à morte, imediatamente concluímos que o processo de continuidade da mente também tenha sido interrompido. Mas tanto as tradições religiosas mais antigas e assim como as recentes pesquisas da metafísica reconhecem que o homem é um ser transcendental.
Jean-Pierre Bayard escreve em “Sentido oculto dos ritos mortuários” (Ed. Paulus): “A maioria das civilizações antigas presta cultos aos antepassados. Seu pensamento é que a pessoa que morreu continua a viver em outra sociedade, sensivelmente da mesma forma que em sua existência terrestre, com alegrias e sofrimentos comparáveis”.
Como em nossa sociedade de consumo os rituais fúnebres são cada vez menos praticados, nós nos distanciamos das práticas que nos levavam a reconhecer a nossa natureza transcendental: quem somos além da matéria física e aparente. Precisamos aprender a ver além das aparências imediatas. Temos que reconhecer a existência dos níveis sutis da realidade, que não são concretos ou mensuráveis.
A física quântica esclareceu que a energia apresenta uma propriedade fundamental: jamais se esgota. Isto é, a energia não se extingue, transforma-se em outra uma forma de energia.
Quando Einstein formulou E=mc² (A energia é igual à massa vezes o quadrado da velocidade da luz), trouxe a ideia da equi­valência entre massa e energia, que podem transformar-se uma na outra, sendo que a densidade da massa - mais ou menos sutil - está relacionada com a velocidade de deslocamento. Desta forma, podemos compreender que quando falamos de “corpo sutil”, podemos estar falando de um estado energético onde a massa desse corpo desloca-se com muito mais velocidade.
A matéria é energia condensada, ou seja, essa energia pode se apresentar em diferentes estados de concentração, dependendo do quanto as partículas ou moléculas estão coesas. Assim, quando temos um estado energético em que as moléculas estão muito coesas, temos uma matéria mais densa ou cristalizada, como nosso corpo físico. Quando as moléculas de energia estão menos coesas, temos o corpo sutil.
Enquanto não ampliarmos a ideia de quem somos, teremos dificuldade de compreender que não somos apenas uma mente pensante!
Podemos observar a continuidade dos ciclos na natureza: quando um quando cai no chão, apodrece, e de sua semente uma nova árvore irá nascer. Ao olharmos para uma semente, reconhecemos o seu potencial de se tornar árvore, mesmo não podendo ainda ver essa árvore. Então, apesar de não podermos assistir o que ocorre entre a morte e o nascimento, podemos reconhecer que, sendo seres naturais, também somos cíclicos!
Atribuir valor à continuidade é uma virtude que independe de crenças sobre a reencarnação. Acreditar ou não em reencarnação é o resultado de uma experiência pessoal. No entanto, vivermos em função da continuidade torna-nos mais responsáveis pelas consequências de nossos atos. Deixar um mundo menos poluído para aqueles que nele permanecem quando nós não estivermos mais presentes é um exemplo desta consciência.
Em vida, resgatamos paz interior, dignidade e bem estar cada vez que aprendemos a optar pelo que nos parece melhor, tanto para nós quanto para os outros.
A ideia de optar por nosso modo de vida já nos exige constante dedicação ao contínuo processo de autoconsciência e compaixão. Por isso, temos que parar para refletir sobre a seguinte pergunta: o que significa optar pelo nosso modo de morrer?
Optar é um termo que indica uma escolha consciente. Escolher é uma forma de controle que nos traz uma sensação de segu­rança, de que podemos nos oferecer o que consideramos melhor. Mas, como podemos escolher se tanto a vida como a morte são processos incertos, portanto incontroláveis?
Não podemos escolher nem controlar os fatos que irão ocorrer em nossa vida e muito menos no momento de nossa morte, mas podemos, sim, escolher - e desta forma controlar, por meio do autoconhecimento e do desenvolvimento da autoconfiança, o modo como iremos reagir perante eles.
Morremos como vivemos: com nossos hábitos mentais, impulsos que podem ser transformados. Podemos escolher cuidarmos de nós mesmos. Podemos educar nossa mente a seguir positivamente, isto é, a reagir positivamente às adversidades. Podemos treinar a mente a atravessar as dificuldades em vez de negá-las ou de criar uma aversão por elas.
Aquele que lida diretamente com suas dificuldades sabe seguir em frente sem se deixar prender por aquilo que deixou para trás.
Aquele que quiser se preparar em vida para o momento de sua morte buscará eliminar seus hábitos mentais negativos, que o impedem de relaxar na sua natureza de confiança incondicional. Como diz o mestre budista tibetano Lama Gangchen Rimpoche: “Se você estiver numa situação negativa no momento de sua morte, deve recordar-se que a negatividade não traz nada. Por isso, volte a atenção para sua concentração interna e para sua autoconfiança”.
Acredito que essa seja uma tarefa para uma vida inteira. Mas enquanto buscarmos a felicidade nas condições externas estaremos lutando para controlar o mundo à nossa volta. Não queremos admitir que essa luta seja inútil, porque não admitimos que estamos continuamente sujeitos aos nossos condicionamentos internos.
Não queremos sentir a vulnerabilidade e a confusão de nosso mundo interno. A subjetividade gera dúvidas. Então, buscamos ser objetivos lidando somente com os fatos do mundo externo. É correto buscar a objetividade, mas o que não podemos fazer é nos afastarmos de nosso interior.
A base de nossa visão externa está em nosso mundo interno. Toda vez que negamos nosso mundo interno estamos nos afastando de nós mesmos e, portanto, também dos outros à nossa volta. Como consequência passamos a nos sentir isolados, sem motivação, desconectados dos fatos externos. Emoções difíceis como vergonha, culpa e ressentimento contaminam nossos pensamentos, palavras e ações, que, por sua vez contaminam nossa realidade externa.
Se nos sentimos isolados em vida, o que dizer da sensação de isolamento que sentiremos quando estivermos enfrentando a morte?
Em vida disfarçamos essa angústia da solidão em atividades cotidianas, em nossos vícios e manias. Mas diante da morte não podemos nos locomover. Não podemos mais buscar alívio para a mente nos prazeres físicos. Temos que encarar a nós mesmos!
O mundo externo é uma projeção coletiva do mundo interno de cada um. As condições físicas e emocionais daqueles que estão morrendo são tão precárias quanto o contato interno que temos com o tema da morte. Precisamos, com urgência, acolher nossa vulnerabilidade frente à morte. Falar sobre ela. Assim, juntos, poderemos desenvolver uma consciência coletiva mais preparada para lidar com as necessidades físicas, emocionais e espirituais daqueles que estão frente à morte.
Ao superarmos o preconceito de falar sobre a morte, atenderemos às nossas necessidades ainda não vistas e consideradas pelo mundo externo. No entanto, só seremos capazes de incluir a morte em nossas vidas quando admitirmos com honestidade onde estamos e para onde queremos ir.

Em geral temos a tendência de reagir com impaciência, irritação e agressividade quando pensamos naquilo em que não queremos pensar. E quando se trata de pensar sobre a nossa própria morte ou a de outra pessoa, essa tendência aumenta ainda mais. Então, vamos encontrar um meio delicado e ao mesmo tempo direto para sondar este tema que desperta áreas obscuras e preconceituosas tanto em nossa cultura como em nosso mundo interno. Vamos falar de coração para coração. Sem preconceitos. Não há nada de errado em morrer quando as causas e condições amadurecem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário